Clarissa França Dias Carneiro
https://orcid.org/0000-0001-8127-0034
https://orcid.org/0000-0002-4299-8978
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis
Introdução
A ciência progride construindo conhecimento cumulativamente. Para que isso ocorra de forma eficiente, é necessário que cada fragmento de conhecimento adquirido seja robusto e confiável, o que por sua vez passa pela realização de experimentos, observações e análises reprodutíveis. O processo de verificação e correção da ciência publicada, porém, ocorre de forma pouco sistemática, o que faz com que a reprodutibilidade não seja garantida pela publicação científica em seu formato atual.
Cabe ressaltar que a reprodutibilidade de um achado científico pode ser definida de muitas formas, e que não existe um consenso sobre o uso dos termos “reprodutível” ou “replicável” (1,2). Neste capítulo, utilizaremos “reprodutibilidade” e “replicabilidade” como sinônimos, indicando a obtenção de um resultado semelhante ao se coletar novos dados em condições similares às do estudo original. No entanto, algumas fontes propõem usos diferentes dos dois termos para distinguir a reprodutibilidade de análises baseadas nos mesmos dados daquelas baseadas em novos experimentos ou observações (3).
Nos últimos anos, algumas áreas de pesquisa têm levantado dados a respeito da reprodutibilidade de achados publicados na literatura científica. Em 2005, o epidemiologista John Ioannidis analisou replicações publicadas de artigos altamente citados em pesquisa clínica que apresentassem rigor metodológico e tamanho de amostra maiores ou iguais aos destes artigos. Ele constatou que 21% das replicações contradiziam o estudo original, enquanto outros 21% encontraram efeitos menores do que os inicialmente descritos (4). Entre 2011 e 2012, as indústrias farmacêuticas Bayer e Amgen divulgaram dados de tentativas internas de replicar experimentos da literatura acadêmica. Dos 67 estudos replicados pela Bayer, 21% haviam sido completamente reproduzidos (5), enquanto na Amgen esse número era de 11% de 53 artigos (6).
Na psicologia experimental, diversos sinais de alerta sobre a baixa reprodutibilidade dos achados publicados surgiram no início da década de 2010 (7,8). Em 2015, foram divulgados os resultados de uma grande replicação sistemática de estudos nas áreas de psicologia cognitiva e social, que indicaram taxas de sucesso entre 36% e 47% (9). Desde então, projetos semelhantes encontraram taxas de reprodutibilidade entre 30% e 85% em diferentes amostras de estudos nas ciências sociais e comportamentais (10–13).
Estes levantamentos, porém, são incomuns e restritos a áreas de pesquisa e conjuntos de artigos bastante específicos. Na maior parte das áreas da ciência, assim, ainda dispomos de poucos dados nesse sentido. Ainda assim, os números disponíveis sugerem que não se deve assumir que achados de pesquisa, mesmo que revisados por pares e publicados em revistas de renome, sejam necessariamente reprodutíveis.
Causas de irreprodutibilidade em pesquisa
Conflitos entre rigor e impacto
A principal causa atribuída às observações descritas acima é um sistema de publicação e incentivos que recompensa o impacto e a novidade de achados científicos, mas não avalia sistematicamente sua reprodutibilidade, que acaba não sendo levada em conta na avaliação de pesquisadores (14,15). Isso leva a uma literatura repleta de resultados positivos e impactantes, porém geralmente às custas de análises seletivas ou enviesadas e efeitos inflados, que distorcem a nossa percepção sobre os problemas científicos em estudo (16).
Soma-se a este problema o fato de a avaliação de rigor metodológico acabar se misturando à de impacto e originalidade no processo de revisão por pares e apreciação editorial, mesmo que ambas tratem de dimensões distintas da qualidade científica. Com isso, o aceite de um artigo, particularmente em periódicos que prezam pela publicação seletiva de achados de alto impacto, acaba dependendo não só dos métodos da pesquisa mas também de seus resultados. Isto cria um conflito de interesse problemático para os autores, já que o avanço na carreira passa a depender da obtenção de resultados específicos, enviesando a condução e a análise dos estudos (17).
Análise e publicação seletivas
Outro ponto frequentemente relacionado à falta de reprodutibilidade na pesquisa biomédica é o uso enviesado de modelos estatísticos. A estrutura teórica na qual se baseiam os testes de significância estatística pressupõe uma definição a priori das variáveis em estudo e das hipóteses testadas. Estes testes, porém, costumam ser aplicados de forma flexível após a coleta e exame dos dados e acabam sendo relatados seletivamente de acordo com os resultados encontrados (18,19). Como não há uma descrição detalhada de todos os procedimentos de análise testados, a capacidade de um leitor em interpretar os resultados fica severamente prejudicada.
Além disso, o problema do engavetamento de resultados “negativos” ou não estatisticamente significativos é reconhecido há décadas (20). Análises empíricas demonstram que o problema é prevalente em muitas áreas da ciência (21–24) – seja por restrições de periódicos ou, mais comumente, por falhas dos próprios pesquisadores em relatar seus resultados negativos (25). Isso também faz com que tentativas frustradas de replicação geralmente não sejam publicadas, dificultando a correção de resultados falso-positivos (26). Paradoxalmente, isso pode tornar a literatura menos confiável à medida que mais pesquisadores se dedicam a uma questão de pesquisa (16).
Limitações da revisão por pares
Apesar da confiança dos pesquisadores no processo de revisão por pares (27), estudos a respeito da efetividade deste sistema como mecanismo de controle de qualidade são raros e geralmente limitados em escopo (28,29). Em sua forma tradicional, é inevitável que a revisão por pares tenha um impacto restrito em aprimorar um estudo, já que ocorre após sua conclusão e baseia-se num relato frequentemente seletivo e enviesado por parte dos autores. Ainda assim, mesmo erros que estariam ao alcance dos revisores frequentemente não são detectados (30). Além disso, contribuições pontuais e objetivas da revisão sobre o texto ou o relato de métodos e resultados parecem ser escassas (31–34), sugerindo que o processo falha enquanto mecanismo de controle de qualidade sistemático da literatura (35).
Cabe ainda ressaltar que a própria revisão por pares e o processo editorial estão sujeitos a falhas de reprodutibilidade. A concordância entre revisores vem sendo avaliada em publicações científicas há décadas, e uma meta-análise publicada em 2010 indica que ela é bastante baixa (36). Da mesma forma, análises de concordância entre revisores de pedidos de financiamento indicam a falta de reprodutibilidade entre avaliações (37,38). Tal problema provavelmente está relacionado à ausência de consenso ou direcionamento explícito sobre que aspectos de um artigo devem ser analisados pela revisão por pares, o que faz com que diferentes revisores e editores abordem o processo de maneiras distintas (39).
Dificuldades na correção da literatura
Um último problema importante levantado pelos debates recentes acerca da reprodutibilidade na pesquisa biomédica é que o sistema de publicação científica não costuma ser eficiente em corrigir a literatura após a identificação de erros. Mesmo na presença de grande esforço da comunidade para detecção de problemas com as publicações, a taxa de sucesso em obter correções ou retratações é baixa, e marcada pela ausência de cooperação dos periódicos (40,41). Além disso, o fato de que replicações posteriores de um artigo não são facilmente rastreáveis faz com que, mesmo quando um artigo é contradito pela literatura, esta informação não esteja necessariamente disponível para seus leitores (42).
Propostas e soluções
Descrição sistemática de métodos e resultados
Como descrito acima, a reprodutibilidade passa inicialmente pela capacidade de repetir os mesmos procedimentos experimentais ou analíticos (1,3). Com isso, promovê-la começa por uma descrição adequada e completa dos métodos e resultados. Existem inúmeras diretrizes disponíveis para o relato de diferentes tipos de estudos (43) e este guia inclui um capítulo dedicado especificamente a este tópico.
Por outro lado, levantamentos recentes indicam que a recomendação de diretrizes por parte de periódicos não parece ser suficiente para a melhoria de descrição de métodos e resultados por parte dos autores (44). Soma-se a isso o fato de que a adesão a diretrizes de relato não está necessariamente entre as maiores prioridades de revisores (39). Com isso, garantir a atenção a elas pode requerer uma atitude mais proativa de editores, através do uso de checklists (45,46) ou revisores especializados (47).
Disponibilização de dados e materiais
A reprodutibilidade também pode ser promovida pela transparência na disponibilização de dados e instrumentos de pesquisa. Ainda que o compartilhamento de dados brutos seja exigido por alguns periódicos e agências de fomento, isto não garante que estes dados sejam de fato encontráveis, acessíveis, interoperáveis e reutilizáveis (48,49) conforme especificado por diretrizes de gerenciamento (50). Assegurar que isto ocorra passa não só pela existência de políticas nesse sentido, mas também pelo controle de qualidade dos dados e pela facilitação de sua estruturação através de repositórios especializados (51).
Em 2015, foram criadas as TOP Guidelines (52), um conjunto de diretrizes para incentivar periódicos a implementar medidas que aumentem a transparência da pesquisa publicada. A proposta abrange 8 dimensões distintas de transparência (citações, dados, código, materiais, desenho/análise, pré-registro de estudos, pré-registro da análise e replicações), propondo níveis crescentes de implementação de intervenções para estimular cada uma delas. De forma complementar, as diretrizes deram origem a um sistema de avaliação de periódicos baseado no nível de adoção de cada prática (53).
Ênfase na metodologia e não no impacto
Outra proposta a nível dos periódicos é a de que os critérios de publicação sejam baseados apenas na avaliação metodológica dos estudos, sem levar em conta o ineditismo e impacto potencial dos resultados. Nesse sentido, a abertura de espaços dedicados à publicação de replicações de achados anteriores pode ter um impacto significativo na confirmação de resultados da literatura (54). Uma possibilidade interessante é a de que periódicos possam solicitar replicações de achados importantes publicados em uma área (55) ou requerer experimentos confirmatórios independentes para publicação de alguns tipos de estudos (56). Idealmente, as replicações devem seguir uma metodologia confirmatória, com protocolos pré-registrados e alto poder estatístico.
Com esse deslocamento da avaliação, o esperado é que a robustez dos resultados passe a ser o foco principal dos pesquisadores. Alguns periódicos têm colocado isso como missão explícita (57), com formulários padronizados para orientar os revisores a direcionarem seus pareceres neste sentido. Dito isso, o uso ubíquo de métricas relacionadas ao número de citações age como um forte estímulo para que o “impacto potencial” de um artigo acabe sendo um critério de seleção editorial na maior parte dos periódicos, o que tem levado à recomendação de que este tipo de métrica não seja enfatizada por periódicos ou utilizada na avaliação de cientistas (58).
Registro de protocolos e Registered Reports
Como um passo adicional no sentido de desatrelar a avaliação da pesquisa de seus resultados, alguns periódicos vêm implementando o modelo de Registered Reports, em que o protocolo do estudo, contendo uma descrição detalhada dos métodos, é submetido à avaliação por pares antes da coleta e análise dos dados (59–61). Neste formato, os autores podem receber correções e sugestões antes da execução do estudo, aumentando a probabilidade de benefícios concretos. Além disso, a prática ajuda a conter tanto o viés de publicação quanto a flexibilidade na análise, ao impedir que os métodos de análise sejam definidos a partir dos dados obtidos (18,62,63). Após a conclusão do trabalho, ele é novamente avaliado pelos revisores, que devem levar em conta a adesão à metodologia previamente aprovada e não os resultados obtidos para seu aceite.
Há outras formas de mitigar o problema da flexibilidade de análise que não envolvem mudanças no sistema de revisão por pares. O pré-registro dos protocolos de estudos por parte dos autores também funciona como uma forma de aumentar a reprodutibilidade, ao permitir a distinção entre análises confirmatórias e exploratórias (62,63). Tal procedimento tem sido adotado em áreas específicas de pesquisa, como ensaios clínicos, com resultados encorajadores (64), e pode ser feito em diversas plataformas especializadas, como o Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (65), ou genéricas, como a Open Science Framework (66,67). Com isso, a recomendação ou requisição do pré-registro de protocolo por parte dos periódicos também pode ser uma alternativa para aumentar a reprodutibilidade de estudos publicados (68).
Transparência na correção da literatura
Apesar das dificuldades mencionadas anteriormente acerca da correção da literatura, o cenário pode ser diferente quando as iniciativas de correção vêm do próprio periódico. Em 2018, a revista Molecular and Cellular Biology realizou um estudo para identificar imagens problemáticas em suas publicações, resultando na correção de 78% dos erros encontrados (69). Quando implantado após a publicação, porém, o processo gerou cerca de 12 vezes mais tempo de trabalho para a equipe envolvida do que ao ser realizado durante a submissão (69). Outras experiências de periódicos específicos neste sentido incluem a checagem sistemática de imagens (70) e de reprodutibilidade de análise (71) durante o processo de submissão e revisão por pares.
Ainda que essas medidas sejam tomadas, é inevitável que alguns artigos com dados errôneos ou inverídicos acabem passando pelo filtro da revisão por pares, que é sabidamente vulnerável a este tipo de situação (30,72). Desta forma, também é importante que periódicos e autores trabalhem de forma ágil para corrigir a literatura quando necessário. Quando correções e retratações ocorrerem, é fundamental que estas tenham suas razões explicitadas de forma transparente, o que vem acontecendo com mais frequência (73). Também é importante que estas não gerem um estigma para os pesquisadores envolvidos, de forma a estimular que as iniciativas de correção partam dos próprios autores quando houver dúvidas sobre a reprodutibilidade de resultados publicados (74,75).
Apoio a novas formas de publicação
Ainda num contexto de buscar maior transparência, agilidade e acessibilidade da ciência publicada, o uso de preprints vem se tornando uma prática cada vez mais utilizada na pesquisa biomédica (76–79). Preprints aceleram o avanço do conhecimento ao eliminar entraves para a chegada de um achado à literatura científica, além de representarem uma forma de acesso aberto a baixo custo quando comparada aos periódicos tradicionais. Atualmente, diversas plataformas existem com diferentes modos de operação e escopo (76,80). Algumas delas, como o bioRxiv, têm demonstrado sucesso na integração do fluxo de publicação de preprints e submissão a periódicos para revisão por pares (81), num modelo que vem sendo seguido por outras plataformas como medRxiv (82) e SciELO preprints (83).
Durante os primeiros meses da pandemia de COVID-19, a importância da velocidade na disseminação do conhecimento se mostrou ainda mais evidente, reforçando o papel dos preprints neste cenário (84–86). Ainda existem preocupações válidas sobre possíveis riscos do uso de preprints, especialmente em relação ao acesso pelo público não especializado (87,88). Dito isso, a evidência disponível sugere que as diferenças entre preprints e artigos publicados costumam ser pequenas, apoiando a ideia de que ambos devam ser considerados contribuições científicas válidas (31,32). Para além disso, considerando-se o atual contexto social e tecnológico, se opor ao acesso gratuito, imediato e ilimitado ao conhecimento científico não parece uma alternativa aceitável (89,90).
Conclusões
Ainda que tenhamos abordado diversas propostas de mudanças no sistema de publicação científica para a melhora da reprodutibilidade, muitas delas ainda estão baseadas em evidências anedóticas e não têm sua efetividade comprovada empiricamente. Com isso, parte da busca por sistemas mais eficazes e eficientes de controle de qualidade em pesquisa deve passar pela testagem experimental de diferentes abordagens. Existem inúmeras questões em aberto e, para respondê-las, a participação dos periódicos é fundamental, seja através da abertura de dados sobre o processo de revisão ou da realização de estudos para avaliar a efetividade de intervenções específicas (28,91).
Por fim, cabe ressaltar que, por mais que periódicos científicos tenham um papel a cumprir na busca por uma ciência mais reprodutível, esta tarefa ultrapassa o escopo do sistema de publicação. Em última análise, desenvolver um sistema de controle de qualidade efetivo na pesquisa acadêmica envolve criar instâncias de revisão e correção ao longo do processo, e não apenas ao seu final. Ao mesmo tempo, é fundamental que os incentivos fornecidos a pesquisadores por instituições e agências de fomento valorizem a transparência e o rigor como objetivos centrais. Com isso, a questão da reprodutibilidade só será solucionada por transformações em múltiplas instâncias, idealmente associadas à pesquisa empírica sobre a efetividade das diversas soluções propostas para o problema.
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